segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

sobre o projeto

“Pequeno inventário de lugares-comuns” é uma investigação coreográfica sobre o universo das ações ordinárias, das pequenas memórias que nos constituem diariamente. Em cena, a construção de uma atmosfera de intimidade, onde movimentos, palavras, sonoridades e imagens vão conviver para criar um inventário vivo de banalidades, daquilo que passa normalmente desapercebido no correr da vida, da “poética do cotidiano”.

Cultivar uma “poética do cotidiano”, tal qual a compreendo, é criar abalos na percepção habitual que temos da vida de todos os dias para que aquilo que está invisível se ofereça à visão. Aquilo que está demasiado exposto, se torna oculto. De tanto ser visível, manifesto, o visível não o é mais, não se pode prestar atenção nele e é por isso que cumpre fazê-lo ser notado. Este é para mim também o papel da arte. E neste projeto me interessa particularmente dar visibilidade a esta dimensão oculta que se encontra no seio do que é mais próximo, do que se faz todos os dias e, que no entanto, (e por isso mesmo) não se vê. O oculto é oculto porque é ao mesmo tempo demasiado desdobrado, demasiado próximo, demasiado cotidianamente consumido para que tomemos consciência dele. Oculto não pela inacessibilidade, mas pela exposição, sem fim, da evidência cotidiana. Apostar na poesia das coisas mundanas é tb uma forma de expressão artística que desloca a arte de seus pedestais e a enxerga como uma atitude frente a vida.

o tempo
Segundo o filósofo romano Sêneca, “a parte da vida que realmente vivemos é pequena. Todo o resto da existência não é vida, mas o tempo”. As pequenas experiências e ações sem relevância do dia a dia seriam como imagens materializadas do tempo. Nós normalmente não sentimos o fluxo do tempo. Embora saibamos que ele está passando a cada minuto, ele não é, na maior parte das vezes, conscientemente percebido, da mesma forma que a maioria dos nossos pensamentos, ações, gestos e falas. Quem lembra tudo o que falou ou fez durante um dia inteiro? Não é curioso e assustador pensar que passamos a maior parte das nossas vidas vivendo coisas que consideramos desimportantes e que sequer temos consciência de estar vivendo?
Descobrir como este fluxo não consciente do tempo se materializa no movimento, pesquisar um “corpo das passagens”, no qual se deflagra o que acontece entre pensar em mover e completar o movimento, trazer visibilidade às transições dos atos funcionais do cotidiano, que geralmente tem causa e efeito claros, mas trajetórias que passam desapercebidas, desvelar o que acontece no “entre”, o que se revela nas passagens, investigar uma “dança das transições”, uma corporeidade feita de percursos, de trajetórias, de momentos intermediários e portanto talvez indeterminados, irreconhecíveis.

referências
Diálogo 1: Christian Boltansky e o tempo das experiências esquecidas.
A idéia de tempo, presente em Boltanski, como esta trama que costura a dimensão desapercebida da vida. Boltansky é o artista das pequenas memórias, dedicado a fazer arte a partir dos objetos esquecidos numa estação de trem, das imagens de uma família em férias, dos nomes de antigos moradores de um prédio demolido, dos rostos de centenas de suíços mortos. Sua obra é um monumento à “fúria do desaparecimento”, porque aponta a contradição inerente à necessidade cultural de lembrar, de um lado, e a realidade do esquecimento, do outro. Boltansky trabalha essencialmente com a fotografia e o seu potencial de capturar e reter o transitório, documentando a passagem do tempo e focando na complexa relação entre tempo, memória e identidade.

Diálogo 2: Fluxus e a arte como experiência do mundo, os “gabinetes de lugares-comuns”.
Outra importante referência aqui é a filosofia do grupo Fluxus (EUA, anos 1960/70), segundo a qual “o comum é, em si mesmo, extraordinário”, e todas as coisas são “agentes de dupla ontologia: pedaços de arte e meras coisas do mundo”. Os “gabinetes de lugares-comuns” são um conceito Fluxus que vão na contramão dos “gabinetes de maravilhas” dos tempos pós-medievais, e sugerem que a arte não seria um recinto especial do real mas uma forma de experienciar qualquer coisa – a chuva, o burburinho da multidão, gestos ordinários, um saco plástico voando ao vento.

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